quarta-feira, janeiro 30, 2008

Estou postando um texto sobre gênero que eu acredito traz um debate crítico e politizado sobre a temática.

O gênero está na UTI
Maria Lúcia Pinto Leal

No âmbito do debate científico observamos ao longo da história usos diferentes para a palavra/categoria gênero e campo de divergências ao conceituá-lo.
A categoria gênero distingue-se do conceito de sexo, cujo escopo se limita a diferenças biológicas. Induzindo a equívocos, vez que ignora que o sexo é também um conjunto socialmente construído de idéias moldadas pela cultura - o gênero é em geral definido em torno de idéias sobre traços de personalidade, masculina e feminina, e por tendências de comportamento que assumem formas opostas. Tomados como um conjunto de traços e tendências, eles constituem a feminilidade e a masculinidade. Porém, vários autores observam que traços habitualmente atribuídos a homens e mulheres não descrevem exatamente a maioria das pessoas e que a ênfase comum sobre masculinidade e feminilidade como fatores decisivos de explicações de desigualdade de gênero é mal colocada. O conceito de androgenia, por exemplo, descreve uma mistura de traços de personalidade masculinos e femininos e têm sido proposto por algumas feministas como parte da solução da desigualdade dos gêneros; no estudo de gêneros há discordâncias tanto sobre a existência de papéis de gênero como quanto a sua importância para entender a desigualdade entre gêneros. Esse argumento, mais atual no debate contemporâneo, sugere que não há um papel masculino e feminino distintos, da mesma maneira que não há papéis de classe ou raciais distintos.
Contrário a esses argumentos, a visão crítica explica a opressão das mulheres não pelo viés das diferenças de personalidade, mas por meio da organização social da patriarquia e suas instituições, variando da divisão de trabalho na família à natureza competitiva e exploradora do capitalismo. Assim, os conceitos de masculinidade e feminilidade servem a funções de controle míticas e sociais que reforçam práticas sócias de dominação e a reprodução dessa lógica via as instituições societárias.
Nesta perspectivas, trazemos à luz debate de algumas questões que mostram que a categoria gênero está agonizando na UTI da realidade social, tais como:
1) a discussão de gênero de forma isolada reduz a sua análise às relações de poder e as práticas daí derivadas, sem articular as questões de classes sociais e as teorias macro-sociais, centralizando o debate em questões de âmbito privado.
O domínio destas visões transpõe a complexidade da opressão das mulheres a uma explicação harmônica e equilibrada do mundo das mulheres, como algo que emerge fora da sociedade. Essa ótica mascara objetivamente os campos divergentes de interesses e conflitos existentes na lógica do capitalismo e fortalece visões fragmentadas e superficiais da questão.
O que queremos sinalizar melhor se explica reportando a exemplos da realidade vivida: é possível analisar da uma mesma forma, com um padrão, a situação de uma mulher que mora na Estrutural-DF que sofre de violência doméstica e outra que mora no Lago Sul e que também sofre de violência doméstica?As duas têm o mesmo campo de vulnerabilidade? têm as mesmas armas para resolver seus conflitos de natureza interpessoal e social? Claro que não, porque as mulheres, que fazem parte da classe dos precarizados, terão que conquistar sua emancipação não só para se proteger da violência domestica como da exploração da sua força de trabalho e da dominação do seu corpo e de suas idéias na sociedade capitalista.
2) A categoria gênero da forma como vem sendo tratada, não contempla as diversas formas de orientação sexual (gays, transgeneros, travestis) e não contempla as conjugações afetivo-emocionais daí decorrentes;
3) Pela dificuldade de construção de um debate socialmente real em torno da nova condição da mulher, do homem e da sexualidade na sociedade contemporânea, caímos na vala comum de análises sem respaldo na realidade que descartam a riqueza objetiva das transformações que estão ocorrendo no mundo feminino e masculino e o impacto destas transformações junto à sociedade e vice e versa;
4) As resposta políticas são dirigidas à discussão do empoderamento dos sujeitos historicamente em condição de subalternidade, discriminação, apartheid e outras violações, mas deslocada da consciência de classe e da luta por mudanças estruturais que eleve a luta social a um novo projeto societário.
Nesta perspectiva, acreditamos que a categoria gênero dada de forma a-histórica e transclassista que não comporte as inquietações acima apontadas, certamente não dará conta de subsidiar as ações de mobilização da sociedade para uma nova construção social que fortaleça os sujeitos históricos.
Portanto, é urgente fortalecer a mobilização política e intelectual, rumo a um projeto societário que se articule com as esferas das liberdades econômicas, de expressão e da sexualidade, no contexto das lutas sociais, privilegiando a participação de todos e todas na construção de processos emancipatórios.

Maria Lúcia Pinto Leal - Profª Drª do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Contra Violência e Exploração Sexual comercial de mulheres, Crianças e adolescentes-VIOLES-SER/UnB.